10 anos de existência dos direitos não-autorais da obra de Jorge Garcia
Na primeira semana do mês de julho, a cúpula do Teatro Municipal de São Paulo recebeu o espetáculo “Copyleft”, que comemora dez anos de sua estreia. No atual modo de produção da cidade, uma peça coreográfica que comemora um decênio é algo a ser observado e explorado. Em um contexto em que o apelo às estreias é reforçado pela mobilização dos editais e pelas instituições que fomentam a produção artística, o fato de uma obra de dança alcançar uma década de existência (e ser reapresentada) deve ser sempre comemorado.
Com direção de Jorge Garcia, o nome do espetáculo dilata em si uma crítica aos direitos autorais, pois o termo “Copyleft” é uma contraposição ao “Copyright’, que é uma forma de proteção aos direitos intelectuais de uma obra. O “Copyright” impede que uma reprodução não autorizada seja realizada por aqueles que não detém a autoria e os direitos de uma obra. No caso da dança, tais direitos autorais geralmente são concentrados na figura do coreógrafo ou daquele que a dirigiu.
A peça apresentada na cúpula do Teatro Municipal de São Paulo mantém a mesma estrutura das temporadas anteriores, quando sete solos de sete minutos são delineados. Este quinhão de tempo de cada solo pode ser modificado posteriormente pelo próprio Jorge Garcia, pelas bailarinas e também por outros coreógrafos. Segundo a chamada no site do Teatro Municipal há a garantia de liberdade para reproduzir, modificar ou redistribuir a obra “Copyleft”, porém há como contraponto uma exigência: que tais direitos sejam mantidos em todas as versões que sejam apresentadas.
A duração de sete minutos de cada solo é acompanhada pelo público através de um cronômetro em contagem regressiva, que é projetado na parede acima da audiência. Há um pêndulo entre a celeridade dos décimos de segundo do mostrador digital e o gestual das criadoras-intérpretes, ora em sutileza, ora vagar, com quedas abruptas ou em movimentos indiretos.
O sólido trabalho de Jorge Garcia permeia encontros com a carreira de sete criadoras-intérpretes a cada vez que se reapresenta. É na interligação com o material humano e na flexibilidade do conceito “Copyleft” que a obra se arquiteta.
O que cada criadora-intérprete vivencia em troca com Garcia permeia diferentes sonoridades, que foram construídas em diálogo com Joaquim Tomé. Além disso, a obra traz em legado a camada de design de luz proposta originalmente por Ari Buccioni (in memoriam) e Jorge Garcia, que foi atualizada pela competente parceria com Rossana Boccia. As camadas sonoras, de design de luz e de cenário amparam os dez anos de “Copyleft”. O que muda nestes dez anos de existências são os resultantes construídos com diferentes intérpretes-criadoras, que se alteraram gradativamente nesta década. E talvez esteja aí o segredo para um decênio de longevidade.
Destacam-se na apresentação vista na cúpula do Teatro Municipal de São Paulo os solos de Irupé Sarmiento, de Fabiana Ikehara e de Dani Moraes. A peça é instaurada pela profunda quietude inicial de Irupé Sarmiento, ao se deitar durante os primeiros sete minutos, com a palma das mãos cobrindo os olhos. Esta delicadeza é continuada no solo que Sarmiento faz em seguida. Com movimentos contínuos, indiretos e nos apoios sutis que a intérprete constrói na relação com o espaço, quando o solo se desdobra em soluções de movimento serenas, mas inusitadas. Há tempos que essa argentina habita o território de dança paulistana, seja na cena livre ou em companhias ligadas ao poder público e sua maturidade se ampliou ainda mais nos últimos anos.
Fabiana Ikehara foi uma grata surpresa. As caminhadas que Ikehara delineia são entremeadas com movimentos brandos e indiretos da coluna vertebral, com refinadas oposições da pelve em desequilíbrio. À medida que o solo se detalha, há uma construção gestual e de escuta gradual da criadora-intérprete consigo e com o espaço, a partir de um eixo central assimétrico do corpo.
Já Dani Moraes vem desenvolvendo uma carreira de pesquisa e autoria, tanto como intérprete solo, como em parcerias com outros criadores da cidade. O que impressiona no trabalho de Moraes nesta conjunção com Jorge Garcia é a busca por gestos que se desdobram na sua singularidade e se desmancham/refazem instantaneamente, no encontro consigo e com as possíveis proposições de Garcia. Seu corpo encontra nas articulações as simultaneidades da pesquisa do instante, em gestos que se gerenciam em níveis no espaço, ao se recomporem em cada remanejo e em cada transferência.
Algumas impressões sobre a ligeireza dos tempos que esta obra nos traz. A velocidade dos décimos de segundo do cronômetro não apenas compõem a paisagem visual da obra, mas também se contrapõem às percepções daqueles que a assistiram em suas várias versões. Estreada em 2014, no íntimo espaço cênico da Capital 35 e perpassando alguns locais da cidade como o Jambu Galpão, a versão apresentada na cúpula do Teatro Municipal mostra como se alterou a percepção de urgência deste que escreve em 10 anos.
Em 2014, quando a obra emergiu no espaço cênico do bairro da Pompéia, os sete minutos de cada solo instituíam um estado de urgência para cada um daqueles trechos apresentados. Naquele momento, a plataforma Facebook era o espaço digital mais utilizado no país. No entanto, o que era ligeiro em tempos de Facebook, tornou-se vagaroso em sua urgência, mas abre para outras dilatações e percepções.
Com um mundo arrebatado pela produção e veiculação constante de imagens, através do frenesi das telas de celulares, os sete minutos de cada solo apresentados na cúpula do Teatro Municipal ganharam uma dimensão diferenciada em uma década. Com Reels que atualmente têm que apreender a atenção do público nos três segundos iniciais ou com micromensagens de no máximo 15 segundos, o habitus construído para a percepção daqueles que usam as plataformas digitais contraiu-se ainda mais neste decênio. Ainda bem que o que encaminha a percepção é o encontro entre um humano com o seu contexto e não pela mediação das plataformas digitais.
Outro ponto que vale salientar: ainda falta à produção do Teatro Municipal apresentar alternativas para um encarte físico, de modo a substituir um programa de apresentação voltado para um espetáculo como “Copyleft”. Os programas feitos em papel são elementos ausentes em muitas produções apresentadas nos teatros da cidade. A não confecção de programas tem aderência ao uso consciente do papel e evita a derrubada desnecessária de árvores.
No entanto, falta uma antessala a uma apresentação tão intimista como a realizada na cúpula do Teatro Municipal, para que o público se instaure em chegança naquele espaço-tempo que antecedeu o espetáculo. Um QR-Code elegante na entrada da Cúpula ou na bilheteria, aliado a uma instrução daqueles que guiaram o público seria o suficiente.
Que venham mais dez anos de “Copyleft” e pelos direitos abertos da obra. E quem sabe um novo diretor (ou o próprio Jorge Garcia) não apresente uma proposta para o cartesianismo dos sete minutos de cada solo e, com sutileza, entrecruze ainda mais as possíveis leituras da peça.
Ficha Técnica
Concepção e Coreografia: Jorge Garcia
Intérpretes-Criadoras: Carol Martinelli, Dani Moraes, Fabiana Ikehara, Irupé Sarmiento, Jessica Fadul, Mariana Molinos, Marisa Bucoff e Victoria Oggiam
Colagem musical, vídeo e projeção: Joaquim Tomé
Cenário: Jorge Garcia (assessoria de Leo Ceolin)
Design de Luz: Jorge Garcia e Rossana Boccia (assessoria de Ari Buccioni)
Produção: Carol Zitto
Duração aproximada: 49 minutos
Cúpula do Teatro Municipal de São Paulo.
Dias 02, 03 e 04 de julho de 2024. 20 h
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