a morte ri a morte é a alegria Georges Bataille (1)
o que o cavalo disse para a companhia de dança?
Talvez com essa charada, início de uma piada com certeza sem graça, pudéssemos adentrar o universo explorado por Marcela Levi & Lucia Russo em sua mais recente criação o que é o coro.coro, realizada em parceria com o pianista Martim Gueller e o Balé da Cidade de São Paulo sob direção artística de Alejandro Ahmed. No palco, 32 intérpretes se engajam em uma sequência de longas cenas pautadas em ações conjuntas, quase sempre sem protagonismo.
nada. esse cavalo que entra e interrompe o ensaio não fala nossa língua.
Quando a cena da piada vira uma questão de Esfinge, coisa de vida ou morte, é porque começamos a ver algo que não queríamos ver. “Eu não paguei para ver isso!”, pode gritar alguém da plateia ao ver uma bailarina relinchar como um cavalo. Mas pode ser também que isso que se mostra sem que a gente queira ou espere nos abra um buraco, de onde emergem imagens longínquas e inéditas. Pois, ao contrário da expectativa dos respeitáveis públicos, a gestualidade que vemos incorporada no elenco recorre a um imaginário entre humano e animal. Se ela é pouco comum na dança quando dentro do regime da arte é justamente porque lá dançar significa controle e domínio sobre o corpo.
o cavalo não fala, ele relincha.
Longe do controle que se espera de um corpo treinado para se exibir para a sociedade (mas apenas por possuir tal treino) esse coro recupera com facilidade materiais de obras anteriores da dupla como Natureza Monstruosa (2011), onde a animalidade se torna paisagem, e Deixa arder (2017), onde o coro se dá por empilhamento de referências. Agora, Levi & Russo colocam sobre a máquina de efeitos que é o palco do Theatro Municipal de São Paulo corpos que cavalgam o ar alegremente como em um musical dos anos 1950, que se movem ensimesmados sobre quatro apoios ou que trotam como cavalos. Adornadas por calças de vaqueiro, pequenas crinas sintéticas em suas camisetas ou coletes que imitam peles de animal, bailarinas surgem e desaparecem de um palco todo revelado, como figuras de desenhos animados antigos: languidas e politicamente incorretas.
a companhia, sem saber o que fazer, mata o cavalo.
Esse caráter cartunesco dos corpos é aquilo que ao mesmo tempo encanta e estranha: são exagerados, sem propósito, vagando em torno de um desejo destrutivo tal qual um Pica Pau ou Willy Coiote segurando uma caixa de TNT. Pois encontrar tal devir animal não significa apenas representá-lo. Significa colocar nos corpos algo do exagerado e do nonsense. Aqui, isso surge pelo empilhamento coreográfico de tentativas de se mover em conjunto com formas animadas e inanimadas. Podemos ver, como se abríssemos o corpo com um bisturi, uma cabeça de Josephine Baker com tronco de Nijinski e pés de Grande Otelo, formando um Frankenstein do entretenimento, coral e polifônico, que anuncia uma dança de longe: seja do lugar de expressões corporais geralmente tidas mero entretenimento (o cabaré, o vaudeville, a dublagem drag, o circo) ou mesmo do lugar onde o movimento vem de corpos não-humanos - fumaças, perucas-crinas que voam como pipas, ou bexigas com gás hélio que pairam sobre as costas de cada performer, todos sempre sobre as cabeças de quem dança a evidenciar um movimento que se dá fora do controle e da visão.
ao abrirem o cavalo, a surpresa...
O grande coro não parece se comunicar através daquilo que codificamos como linguagem humana. Raramente se olham, pouco falam, e quando o fazem é como se apenas dublassem algo. Mesmo seu movimento não comunica. São para-raios sem agência, que apenas recebem ondas dispersas que os atravessam, a despeito da transmissão de qualquer tipo de mensagem. Para esse coro ensimesmado, importa pouco que todos façam as coisas igualmente. Logo na primeira cena, que dura mais de dez minutos com uma mesma sequência simples de caminhada repetida por todo o elenco, notamos que a repetição da mesma estrutura é a base para se notar a diferença entre cada um. Nessa simplicidade, entendemos um dos princípios de todo desempenho humano: sua possibilidade de repetição e transferência entre corpos é, ao mesmo tempo, sua força de instauração no mundo e aquilo que o fará, necessariamente, se modificar.
...as entranhas do cavalo parecem muito com a das pessoas que dançam.
E qual a razão de ser desse coro assombroso em um mundo como o nosso? Pois há que se perguntar o que deseja um espetáculo que cava um mover-se de antes ou de fora da própria estrutura (arquitetônica, social e estética) do Theatro onde hoje se apresenta. Seria apenas uma nova articulação da bizarrice racista e xenófoba que funda o showbiz, sempre buscando um outro primitivo e exótico para os olhares das classes cultas?
a companhia não consegue dançar mais depois disso.
Parece que não. Parece que, aqui, sempre que o público embarca na bizarrice de um coro/corpo estranho ela é, intencionalmente, desarticulada. Por isso ouvimos tantos engasgos e incompletudes na trilha, por isso as cenas acabam de maneira abrupta, por isso o esgarçamento do tempo não visa produzir nada além de sua própria distensão. Essa desarticulação interrompe nossa fruição e nos distancia do gozo de ver os corpos irem para além do que imaginamos que eles possam. Nesse sentido, é central para a peça a cena na qual um coro de mulheres dubla Yma Sumac exageradamente, com olhares retorcidos para cima e mãos tremulas próximas ao sexo, como se se masturbassem com o próprio canto agudo. No meio de um corredor de pessoas a empinar perucas como pipas, elas estão parcialmente encobertas, fora do alcance do público e protegidas da atenção pelo próprio movimento das perucas. Aqui se sintetiza esse jogo entre demonstração burlesca e impedimento de sua fruição.
algo aconteceu que demanda outro modo de se mover.
Revela-se nela a importância de tal coro, sem mito fundador e cena de origem, distante daquela comunidade sobre o palco geralmente chamada “companhia”, a mostrar algo ilusoriamente pronto na forma espetáculo feito a partir do que é igual entre os corpos (geralmente seu treinamento em um tipo de dança). “Abaixo a igualdade da semelhança!” Aqui o coro é, usando o termo de Jean-Luc Nancy, inoperante (2), sem finalidade, reconhecendo e expondo a alteridade dos corpos logo em sua cena inicial. No Brasil, cujo mito de origem é o da não-violência (3) - da história feita sem sangue por um povo genuinamente bom destinado à grandeza - é urgente demonstrar a possibilidade de uma comunidade sem centro, fundada sem mito de origem e que reconheça, ao mesmo tempo, a violência e a alegria de sua história. Em tempos de ressurgimento de agrupamentos fascistas, organizados ao redor de um ideal de mundo em comum, só se pode responder com a dispersão e a explosão risível do burlesco.
o cavalo, morto, não dirá mais nada. mas, se tivesse podido falar, o animal morto diria que a palavra “performance” foi primeiro usada para corridas de cavalos na frança até 1876, e só depois significou ações humanas (4).
Aqui, não vemos apenas coro. Vemos coro.coro, multiplicado por si mesmo, anunciado em minúsculas em um programa todo diagramado em caixa alta, sufixo que indica o formato de algumas das características daquilo que se mostra (poderia ser chapado como um .png ou comprimido como um .zip, mas é .coro). Coro metalinguístico, pois é só sua própria repetição farsesca que permitirá seu desmantelamento e outra configuração possível de coro e corpo. É aquilo que parece pergunta, mas que já é resposta correndo atrás do próprio rabo. É ato falho de corpo, sua variante a partir de um erro ortográfico, aquilo que sobra quando algo do corpo enquanto integridade falta, ou o que vemos quando percebemos aquilo que há de menos humano em nós, e que só o espetáculo ou o pesadelo conseguem nos mostrar.
há algo do trote em todo passo de dança.
Texto escrito a partir de ensaio da peça assistido em 11 de outubro. Agradeço às diretoras e à equipe do Balé da Cidade de São Paulo pelo compartilhamento da obra em processo e fotos de ensaio.
Referências
(1) Bataille, Georges. Poemas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. p. 85
(2) Nancy, Jean-Luc. A comunidade inoperada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
(3) Ver Chauí, Marilena. O mito da não-violência. In:_______ Sobre a violência. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.
(4) Ver Bojana, Cvejic. Notas para uma sociedade da performance. In: Catálogo Atos de Fala 2018. Online.
Ficha Técnica
Fonte: Programa do espetáculo.
Concepção, direção e desenho de som: Lucia Russo & Marcela Levi.
Performance e Cocriação: Alyne Mach, Ana Beatriz Nunes, Ariany Dâmaso, Bruno Rodrigues, Camia Ribeiro, Carolina Marinelli, Cleber Fantinatti, Erika Ishimaru, Fabiana Ikehara, Fabio Pinheiro, Fernanda Bueno, Grecia Catarina, Harry Gavlar, Isabela Maylart, Jessica Fadul, Leonardo Hoehne Polato, Leonardo Muniz, Leonardo Silveira, Luiz Crepaldi, Luiz Oliveira, Manuel Gomes, Marcel Anselmé, Márcio Fillho, Marina Giunti, Marisa Bucoff, Odu Ofá, Rebeca Ferreira, Renata Bardazzi, Reneé Weinstrof, Uátila Coutinho, Victor Hugo Vila Nova, Victoria Oggiam e Yasser Díaz.
Criação do desenho de som e pianista convidado: Martim Gueller.
Assistente de coreografia: Lucas Fonseca.
Desenho de luz: Laura Salerno.
Cenografia: Camila Schmidt
Figurino: Lucia Russo e Marcela Levi em colaboração com João Victor Cavalcante.
Sonorização: André Omote.
Comments